Da mesma forma que o mundo se originou a partir de movimentos rítmicos e ressoantes que são constantemente renova- dos, nossa consciência é renovada através da música e da dança na presença do Divino.
Gabriele Wosien
Este artigo tem como objetivo explorar a relevância dos ensinamentos de Rudolf Laban na dança e as noções de movimento na clínica em Biossíntese, especificamente os conceitos de “campos motores”.
A Biossíntese é uma abordagem psicoterápica que busca criar condições positivas para que os movimentos auto-reguladores do indivíduo recobrem fluência e expressão. Fundamenta-se em diferentes fontes de conhecimento, entre elas o trabalho pioneiro de Wilhelm Reich, que postulou como indissociável a relação entre corpo e mente.
Em relação à “linguagem expressiva” do ser vivo, Wilhelm Reich escreveu:
Por exemplo, a palavra alemã ausdruck tem sua expressão equivalente na língua inglesa que descreve exatamente a linguagem do organismo vivo: o organismo vivo se expressa em movimentos, por esta razão falamos sobre “movimentos expressivos”. O movimento expressivo é uma característica básica do protoplasma. Isto distingue o organismo vivo do não-vivo… Temos que ir através de uma mistura de expressões patológicas e movimentos não naturais… para chegar à expressão genuína do organismo. (REICH, 1979).
Freud compreendeu a importância da linguagem dos movimentos e escreveu em seu ensaio “Fragmento da Análise de um Caso de Histeria”:
Aquele que tem olhos para ver e ouvidos para ouvir pode se convencer que nenhum mor- tal pode guardar um segredo. Se seus lábios estão silenciosos, ele conversa com a ponta de seus dedos; traição escapa por todos os seus poros. (FREUD, 1905)
A Biossíntese trabalha facilitando o contato do indivíduo com suas qualidades e recursos internos. Estes podem se expressar através de movimentos que podem ser sutis e leves, imperceptíveis ou densos. Compõem os passos de uma dança reveladora, comunicativa e participativa. David Boadella, criador dessa abordagem, tem frequentemente comparado o processo psicoterápico a uma dança entre terapeuta e cliente.
Individualidade e expressão
Reich afirmava que, em uma sessão terapêutica, dois sistemas energéticos estão presentes: dois animais em interação, com reflexos básicos de orientação e estratégias de sobrevivência. Este pensamento ganha importância no que tange à consciência do nosso ressoar em níveis orgânicos e auto-reguladores básicos. No entanto, isto acontece dentro de uma história, cultura e singularidade de cada sujeito, o que torna ainda mais misteriosa e única a expressividade do corpo e de suas ações.
Bob Moore, eminente healer irlandês, descreve a individualidade como uma estrutura peculiar humana que nos distingue dos animais. Cada ser humano tem uma alma individualizada. Moore (1993) afirma que “as coisas que fazemos são uma expressão do que queremos trazer para a vida. A única forma que conseguimos fazer isto é através do nosso corpo físico. A alma precisa do corpo físico para expressar-se e crescer”.
Sentimo-nos felizes quando fazemos contato com nossos ritmos orgânicos e qualidades e nos expressamos. Percebemos que nossa individualidade é reconhecida e aceita por outros, que somos parte de uma comunidade. Isto cria um movimento continuo de espaços interiores para fora e vice-versa. A vida torna-se dinâmica, alegre e criativa. Por outro lado, adoecemos quando não comunicamos nossos desejos, valores crenças, sentimentos. Transformamos nossa pulsação de vida em desconforto e aparecem sintomas tais como sentimento de fracasso, isolamento, dores.
Conquanto definir o conceito de dança não seja uma tarefa fácil, Suzanne Langer (cita- do por Van Camp –1997), teórica da dança, nos oferece uma acepção esclarecedora: “A dança é uma aparição de poderes ativos, uma imagem dinâmica. A dança, como nenhum outro trabalho de arte, é uma forma perceptiva que expressa a natureza dos sentimentos humanos. A dança é movimento transformado em expressão, gesto”.
Rudolf Laban nasceu em 1879, na Bratislava, hoje República Tcheca. Criador da dança contemporânea começou sua carreira como escritor e arquiteto e, mais tarde, aplicou esses conhecimentos às áreas de coreografia, dança, teatro, educação, terapia, linguagem corporal, orientação profissional. É de grande impacto a totalidade de seus insights sobre a arte do movimento.
Quando criança, acompanhando sua família que residiu em diversos países, Laban teve a oportunidade de observar diferentes tradições de danças, artes marciais e outras ex- pressões ligadas ao corpo em várias culturas. Identificou um conjunto de movimentos básicos a todas, que comunicam nossas necessidades mais fundamentais: sentimentos, ações, impulsos, desejos.
Em diversas tradições do saber humano, o movimento é visto como uma das leis fundamentais do universo. Tudo está em constante mudança, quer seja em crescimento ou na decadência, divisão ou união, ritmo e fluxo. Em todos os campos da vida, no espaço ou na terra, minerais e cristais, há constante movimento.
Reich postulou que o movimento é a característica fundamental de tudo que vive. Esta foi também a inspiração de Laban, que formulou uma teoria ampla sobre o movimento. Além de outras valiosíssimas contribuições, sua maior criação no mundo da dança foi a elaboração de um complexo sistema para analisar e anotar o movimento. Conhecido mais tarde como “Labanotation”, esse sistema tornou-se um método padrão de notação na dança.
É dele a inferência de que “A extraordinária estrutura do corpo, com as ações surpreendentes que pode executar, é um dos maiores milagres da vida. Cada fase do movimento (…), cada simples gesto (…) revela um aspecto de nossa vida interior”. (LABAN,1978).
Laban identificou dez ações básicas presentes na dança:
Extensão
Flexão
Pular
Saltar
Cair
Parar
Transferência de peso
Deslocamento
Torcer
Rodar
Inclinar
Ainda segundo Laban, cada ação resulta em uma notação específica (Labanotation). O resultado é semelhante a uma pauta musical. Ele foi além da notação descritiva e incluiu a qualidade presente no movimento ou ação, agregando à notação outros elementos tais como espaço, peso, tempo e fluxo.
Feder concatena essa perspectiva:
De grande interesse para os pesquisadores da dança e terapeutas do movimento é o trabalho de Laban sobre a análise qualitativa do movimento, em termos de como o movimento é executado e pode ser analisado em termos de seus componentes: espaço, peso, tempo e fluxo. (FEDER, 1981).
Podemos ter, por exemplo, um fluxo livre ou controlado. As ações combinadas com estas qualidades resultam em padrões de movimentos que podem ser chamados de esforços. Laban nos diz que o esforço é um tipo de força vital que contém, em estado la- tente, a forma do movimento que será expresso. É a combinação das ações com espaço, tempo, peso e fluxo. Os movimentos sejam eles livres ou controlados, genuínos ou distorcidos, criam diferentes atmosferas.
Como aponta Laban:
Aquele que observa um movimento fica imediatamente consciente não somente da traje- tória e ritmos do movimento, mas também das atmosferas que eles carregam, pois os movimentos no espaço são coloridos pelos sentimentos e idéias que os acompanham. (LA- BAN, 1978).
Estas ações nos revelam padrões básicos de movimentos, como afirma Peggy Hackney, discípula de Laban:
Nosso corpo humano recebeu um código fisiológico programado para completar certos movimentos nos primeiros anos de vida (…). Eles estão enraizados no organismo, inclusive no sistema neuromuscular (…), eles influenciam a capacidade da pessoa de experienciar o mundo e mover-se nele. Se o indivíduo não vive estes padrões de movimento, o desenvolvimento será impedido. (Citado em FERNANDES – 2002.)
Essa idéia é semelhante às noções de “campos motores” descritos na Biossíntese. O conceito de campos motores foi desenvolvido por David Boadella a partir de várias fontes, inclusive o conceito de campos de força. São oito campos que agem no tecido embrionário durante a formação do feto. Constituem seqüências de movimento essenciais no desenvolvimento da criança. São padrões de intencionalidade que estão no centro de nossa linguagem não-verbal. David Boadella assevera que eles são padrões biológicos ativados no processo de um crescimento saudável.
Nesses campos observamos o fluxo, o peso, o espaço, a qualidade do movimento. Na clinica, é importante distinguir um movimento mecânico, sem significado, daqueles preenchidos com intenção, que surgem de um lugar interno. Estes trazem em si uma qualidade espontânea e vêm acompanhados de um sentimento de liberação e prazer. Estão associados com nossos movimentos espontâneos no brincar, improvisação e criatividade. Existe uma intencionalidade que precede o movimento. Esta intencionalidade traz consigo elementos reveladores de um mundo interno claro, leve, luminoso – ou denso, pesado e arrastado.
Esses movimentos, em número de nove, existem em uma relação de polaridade, exceto pelo campo da pulsação, que está presente em todos os outros.
São eles:
Tração x oposição
Rotação x canalização
Extensão x flexão
Ativação x absorção.
Eles ressoam em diferentes níveis de dimensões, expandindo do visível ao invisível, do somático ao transcendente, do emocional aos sentimentos, criando padrões de diferentes formas, cores, sons, texturas, originando diferentes atmosferas.
O movimento de alcançar, por exemplo, que está associado ao campo de tração, pode ser expresso com uma tonalidade mais sensual ou refletir uma necessidade de proteção, de ser tomado nos braços, ou ainda um firme agarrar e tomar posse de uma coisa e/ou situação.
Podemos traçar, nessa perspectiva, um paralelo com o pensamento de Laban:
O corpo humano move para satisfazer uma necessidade. O movimento cumpre uma função de realizar um objetivo que é importante. É fácil perceber quando o movimento de uma pessoa é dirigido para objetivos tangíveis. Contudo, dimensões intangíveis também existem e elas inspiram os movimentos. (LABAN, 1978).
Observação clinica de movimentos em uma sessão terapêutica
David Boadella pontua, com propriedade, que “a tarefa do terapeuta é compreender a intencionalidade dos conteúdos emocionais e psíquicos presentes na linguagem do movimento, particularmente aqueles dos campos motores”.
Desenvolver um sistema de notação em Biossintese, como é feito na dança, pode ser de grande ajuda para realizar a tarefa proposta acima, principalmente para estudantes que estão treinando a observação. Aprender a decodificar os campos motores, a perceber a riqueza de detalhes e expressões que eles contêm e identificar os diferentes gestos que compõem os movimentos.
Podemos observar movimentos lentos, rápidos, quietos ou agitados, abertos ou fecha- dos, íntimos ou socializados, pesados ou leves. Contidos, livres, apertados, expandidos, para o alto ou para baixo, sustentados ou colapsados, e muitos outros sinais corporais inumeráveis. A titulo de exemplo, citamos alguns: piscar os olhos, punhos cerrados, movimentos mínimos da cabeça ou das mãos. Pés que se impacientam, boca cerrada, fala compulsiva, imagens e pensamentos repetitivos, etc.
Ressonância
É a habilidade de estar sintonizado consigo mesmo que faz o terapeuta capaz de sintonizar com o outro.
Ressonância é um conceito fundamental na psicoterapia somática Biossíntese. É a capa- cidade de deixar que o som do outro penetre em nós, que possamos escutá-lo em nosso próprio sistema interior, deixando-o vibrar em nossas células. É um conceito originário da Física.
Pitágoras falava da ressonância na Música. É uma força organizadora presente na natureza. Essa ressonância se expressa no contexto terapêutico através do ritmo que se estabelece entre terapeuta e cliente. Ela cria uma dança em que um segue os passos do outro, entrando na fluência, acompanhando o movimento. É utilizada na dança como um elemento de criação, exploração e aprofundamento.
Quando falta ressonância no contexto terapêutico, temos uma relação empobrecida dos elementos essenciais na cura. Através da ressonância nos colocamos como um instru- mento canalizando forças do universo da cura.
O campo de flexão como um passo de dança – exemplo clínico
Cito o caso de uma cliente que frequentemente, na sessão, se coloca numa postura de flexão. Sentada em uma cadeira, suas pernas estão juntas bem apertadas, o tórax dobra- se sobre o colo. A coluna está rígida e os ombros pesados. Ela esconde a parte sensível do corpo nesta postura. Convidada a sentir sua postura e as sensações escondidas por trás dela, gradualmente ela faz contato com uma tristeza profunda, por estar carregando tantas responsabilidades em sua vida. Ela está colapsando. Não tem tempo para cuidar de si ou criar espaço para o prazer.
Sentada a seu lado, observo e sigo os pequenos movimentos que faz. Pontuo os movi- mentos dentro de um espaço relacional inclusivo. Aos poucos, ela vai mudando sua postura. A coluna vai se alongando, a expressão vai se abrindo. Seguir os movimentos de seus olhos, que falam das restrições que ela tem colocado a si própria na vida. É importante poder ressoar no seu espaço pequeno e contraído, na sua dor.
Ficar ao seu lado, como parte desta dança, e sintonizar com algo maior que sustenta o movimento, que é sua alegria e prazer escondidos. Saber que existe uma guiança para esta dança que a levará para um lugar de maior liberdade.
Conclusão
Há muitos elementos comuns entre o trabalho da Biossíntese e a dança espontânea. Ambos são instrumentos de organização das emoções e da psique, caracterizados pela busca do movimento expressivo integrado. Trabalham com a ressonância, enfatizando o “como” na relação com o corpo, com o outro, com o si mesmo. Ambos respeitam a intencionalidade latente, criando oportunidades para que se revele.
A vivência de movimentos expressivos é um canal para a autocura e o conhecimento de si. A notação em dança é um método bastante pertinente de disciplina e criação. Pode- mos nos inspirar nele para disciplinarmos a nossa observação como psicoterapeutas e enriquecer o contato com o cliente.